sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Um poço caipira, o Sebastião Salgado e a Martha Medeiros


Demorou um pouco mais do que em outros lugares do interior de São Paulo, mas a água aqui no sítio também já começou a rarear. Toda a nossa água vem de um poço caipira de 6 metros de profundidade que nos abastece regiamente durante todo o ano. É água límpida, gostosa, que sempre dá e sobra. Mas agora falta.

Nesta segunda-feira, pela primeira vez neste inverno, o nível da água desceu mais de um metro, e conforme nosso consumo aumenta (nos dias de irrigar as mudas do viveiro de árvores, por exemplo) ele desce ainda mais um pouco, chegando quase à pontinha do cano da bomba. Se a gente bobear, ela puxa ar.

A solução foi colocar uma boia que liga a bomba quando os lençóis freáticos abastecem o poço e desliga a sucção de água quando o poço esvazia. Isso quer dizer que às vezes nossa caixa d'água enche, outras não. Isso quer dizer que às vezes tem água pra tomar banho, às vezes não. E o mesmo pra regar as plantas, lavar a louça, a roupa, escovar os dentes…

No início da semana terminei de ler Da minha terra à Terra, livro em que o famoso fotógrafo Sebastião Salgado conta sua história de vida e sua experiência trabalhando ao redor de todo o mundo, de áreas de grandes mazelas sociais, como muitos países da África, a lugares de paisagem inesquecível, paraísos na Terra. Todo o texto é muito bonito e cheio de reflexões sobre o mundo e a raça humana, mas o que mais me tocou foi a reflexão ao final, na conclusão, onde ele diz algumas coisas importantes:

- … o homem das origens é muito forte e muito rico em algo que fomos perdendo com o tempo, tornando-nos urbanos: nosso instinto.
- Vi o que éramos antes de nos lançarmos à violência das cidades, onde nosso direito ao espaço, ao ar, ao céu e à natureza se perdeu entre quatro paredes. Erguemos barreiras entre a natureza e nós. Com isso, nos tornamos incapazes de ver, de sentir…
- Se em meu livro Trabalhadores fiquei orgulhoso por poder mostrar que somos um animal incrivelmente engenhoso na capacidade de produção, também vi que, em nossa maneira de viver, fizemos de tudo para destruir aquilo que garante a sobrevivência de nossa espécie.

Depois de terminar esse livro andei folheando A graça da coisa, da Martha Medeiros, espetacular coleção de crônicas guardada na minha estante entre outros livros dela, lidos sempre com muito prazer. Na página 40 está Alguém quem?, texto publicado num jornal do Rio de Janeiro ou de Porto Alegre em 20 de novembro de 2011.

Filosofando sobre aquele tão familiar pensamento do "alguém tem que fazer alguma coisa" ela fala de mim e de você que, por arrogância ou egoísmo, nos anunciamos muito capazes, mas quando a teoria necessita ser posta em prática, somos os primeiros a transferir responsabilidades.

Nessa parte do texto, lendo deitada, fechei o livro sobre o peito e fiquei lembrando da imagem da pouca água lá no fundinho do poço. Somos cinco adultos morando no sítio e ainda temos direito ao espaço, ao ar, ao céu e à natureza que, segundo Sebastião Salgado, a maioria das pessoas já perdeu. Além disso (e por causa disso), ainda preservamos um pouco do nosso instinto e interagimos com a natureza tentando nos integrar sempre mais e entendê-la.

Talvez muitos dos moradores das cidades já tenha se dado conta de sua responsabilidade no uso correto da água que chega às torneiras, mas certamente muitos ainda transferem responsabilidades dizendo que alguém tem que fazer alguma coisa. Quando se mora numa comunidade enorme, onde é impossível acompanhar tudo o que acontece na cidade - e eu passei a maior parta da vida em lugares assim - acho que a gente tem a sensação de que existe ali uma infra-estrutura pronta para nos servir seja lá qual for a nossa demanda. É muito comum ouvir gente dizendo "eu pago, eu tenho direito". Isso, aliás, acontece muito em relação a lixo: "eu pago os impostos que pagam os salários dos varredores de rua, então quando jogo lixo no chão eu estou dando emprego a eles". Eu já ouvi isso, juro.

Basta a gente se mudar para um mini lugar, onde está nas nossas mãos o controle de tudo o que entra ou sai, funciona ou quebra, tem ou falta, que a gente percebe a responsabilidade de cada um no funcionamento do todo. Somos cinco aqui pra dividir aquela aguinha no fundo do poço. Se usarmos com inteligência e educação, vai dar pra hoje e pra amanhã. Se bater um egoísmo, acaba hoje mesmo para as pessoas, os animais e as plantas, que são o comércio que nos sustenta. E aí toda a engrenagem emperra.

O raciocínio e o funcionamento são os mesmo numa pequena, numa média ou numa grande comunidade, e certamente todo mundo já sabe disso. O que falta é se perceber responsável, ao invés de esperar que alguém faça alguma coisa, e usar com muito respeito aquilo que garante a sobrevivência da nossa espécie.

10 comentários:

  1. Muito bom, pena que pouca gente chega neste entendimento. Também moro num sitio agora depois de velho!!! Abraço.

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    1. oI, Claudio, fale-mais desse lugar, como foi morar aí? Gostaria também de poder.

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  2. Oi! Já li algumas postagens e bisbilhotei pelo blog mas não achei teu nome. Estou encantada com o blog! Percebi muitas coisas em comum, mas a maior coincidência é que estou lendo, neste momento, o livro do Sebastião Salgado. Também moro num sítio, coisa bem recente, pouco mais de dois meses. Quando ainda morava em Porto Alegre, na casa da minha mãe, uma sabiá também resolveu fazer o ninho nos galhos da Alamanda, que fica em frente a porta, e minha mãe não deixava ninguém acender a luz para não incomodá-la. Resultado foi, que a dona sabiá usou o mesmo ninho por três anos seguidos. Eles sabem quando são cuidados! Bom, poderia escrever linhas e mais linhas sobre o que escreveste no teu blog, coisas aprecio muito, mas ficarei por aqui no comentário e continuarei conhecendo o De Verde Casa. Abraços! Tiane

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  3. Lindo texto! Precisamos nos abrir para enxergar a natureza de outra forma.

    Abraço,
    Vânia Joly

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  4. A felicidade, sem dúvida alguma, é fruto de coisas simples e comuns, onde tiramos lições de vida. Compartilhar, viver, sorver de cada experiência o substrato quase mágico que nos seres melhores, mais fortes.

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  5. Lindo texto!
    E estou encantada com sua fotografia.
    Sou produtora e estou trabalhando em um projeto sobre o meio ambiente.
    Gostaria de conversar sobre uma colaboração mútua.
    Se interessar e estiver em São Paulo ou Ibiúna, espero uma resposta até 14/julho (quinta). Grata
    marina.apmoura@hotmail.com

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  6. Meu poço secou, como recuperá-lo? Alguém pode me orientar neste sentido?

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  7. Oi Juliana, sou o Paulo Rossi, trabalhamos juntos no SENAC-SP.
    Cheguei no teu site depois de ter assistido a uma entrevista sobre tintas feitas com terra. Acabo de ler o texto acima, gostei muito, como também estou gostando da proposta do Dever de casa.
    Um grande abraço.

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    1. Oi Paulo! Que delícia seu comentário, muito obrigada!
      Eu agora tenho a Escola Orgânica Holambra, que você pode seguir no Instagram ou no Facebook.
      É lá que ando falando sobre educação ambiental e temas correlatos.
      Seja muito bem vindo!
      Um beijo com saudades,
      Juliana.

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  8. show!!! http://www.gramaspardim.com.br/

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